Eleição do Trump 2.0, um império esperneando sobre morrer?
As histórias, mitos e lendas que uma sociedade conta sobre ela mesma são um início interessante para entender como essa sociedade se vê, seus valores compartilhados, aspirações, medos e o que ela considera como o Outro, ou seja, naquilo que ela não se vê e não quer vir a ser.
Nesse sentido, as histórias que Hollywood conta nesse momento conturbado da política estadunidense são uma pista do que se passa no imaginário coletivo daquela terra estranha e estrangeira. Digo pista pois devemos considerar também o grande filtro de Hollywood para entrega de produtos para consumo; a equipe de marketing e a previsão da bilheteria.
Megalópolis de Coppola saiu alguns dias antes da segunda eleição de Trump. Curiosamente, ele desvia um pouco o filtro da equipe de marketing e previsão de bilheteria, já que é um filme autofinanciado por Coppola. Admito que fui um pouco no escuro assistir o filme, sabia por alto que deveria se tratar de uma reimaginação do conflito de Cesar e Cícero no Senado romano por conta do nome dos personagens (César e Cícero mesmo, sem grandes surpresas) e da cidade fictícia (Nova Roma, não, o filme não é sutil), mas logo no trailer ele me surpreendeu. O trailer antes de Megalópolis, um filme sobre conflitos num Império que potencialmente causaram mudanças bruscas naquele regime, é de Gladiador 2, com escravos e soldados discutindo o conceito de liberdade moderna (e estadunidense, sejamos sinceros). Não acho que haja curiosidade sociológica que me faça ver essa sequência, meu gênero de filme duvidoso preferido é terror, mas ela acrescenta na experiência de Megalópolis, mesmo que acidentalmente.
Os dois filmes tratam sobre mudanças bruscas de regime político naquele que no imaginário popular, reforçado por uma historiografia não livre de interesses sociopolíticos, foi o maior Império de que se tem notícia (na Europa) e o qual boa parte dos historiadores politicamente interessados de ocidente, sejam profissionais e aventureiros, gosta de apontar como a gêneses do mundo ocidental e seus valores.
Se essa gênese é real ou não é tarefa para um debate histórico e historiográfico sério, coisa que eu não farei. O que me interessa nesse caso, e o que se relaciona com a eleição de Trump, é a questão discursiva. Demos sentido a nossa realidade material através da linguagem, essa linguagem constrói discursos e esses discursos conferem sentido a nossa realidade sociocultural. Que discurso esta sendo construído e retroalimentado por Hollywood e pelo imaginário coletivo?
Numa visão permeada de delírios de grandeza coletivos, podemos entender que os Estados Unidos é a nova Roma e que esta Roma esta ruindo. Pelo menos na concepção dos próprios estadunidenses. Eu pessoalmente daria um passo atrás e não sei nem se afirmaria que esse Império foi tão império assim, ou se foi uma fracção do Império Britânico praticando imperialismo por conta própria durante mais ou menos 80 anos. Mas, novamente, o que importa é a realidade social construída a partir desse discurso de ruína de um grande império.
Um país com problemas socioeconômicos numa época de mudanças climáticas e incertezas econômicas discursivamente representado como um grande Império, outrora glorioso, em franco declínio, despencando em queda livre na frente de todos. De fato, é de se esperar que os partidários desse Império não queiram ver o fim e anseiem por um passado idílico. Inclusive, os novos chegados nesse Império, o que em parte explica a votação expressiva dos latinos em Trump. Quase um "agora que cheguei na festa vocês vão tocar Toda Forma de Amor e Balão Mágico?". Nesse contexto, o slogan "Make America Great Again" se torna interessante e apelativo.
Aqui é pouco importante se esse Império já foi de fato grande ou até se foi grande para o seu grupo social, o que importa é que, na sua vez, ele esta caindo. Nessa altura do campeonato, o ponto eu quero chegar já se tornou óbvio; um movimento político que se alimenta tanto de aflição quanto do sentimento de que existiu um passado idílico que precisa retornar é o fascismo. Hitler falava de um passado glorioso da raça ariana, Mussolini do próprio Império Romano, Trump ainda não delimitou um período histórico, mas certamente aquele que a America foi Great era melhor que o tempo presente. Não ficou claro se era o momento da segregação racial, escravidão ou do extermínio dos povos indígenas na Marcha para Oeste, mas um desses.
Discutir o grau de veracidade desse passado não me parece muito eficaz, ele é discursivamente construído com interesses políticos e não historiográficos, e historiadores muito mais competentes que eu já o fizeram. Me interessa, então, oferecer uma outra realidade social discursivamente construída.
A realidade construída discursivamente e imposta materialmente desse estágio do capitalismo naturaliza seus aspectos desumanizadores e desoladores, nos coloca no eterno estado de defesa e nega a possibilidade de pensar qualquer coisa nova. No máximo, os próprios movimentos de esquerda anseiam por um outro passado, seja este sem Trump no poder ou antes da Reforma Trabalhista no Brasil. Estamos disputando passados.
O próprio filme Megalópolis se atém a reescrever o passado. Cesar engravida Cícero (através de sua filha, personagem nada desenvolvida e sem nenhum anseiam além de ser filha da alguém ou mulher de outro alguém) e Brutus, a representação do filme do fascismo, tropeça na sua própria ambição. O futuro, então, é resolvido por um punhado de homens geniais entrando em acordo e o Império retorna a sua glória. Mas Cesar era, em muitos aspectos, tirânico, Cícero um conservador aristocrático, Roma formada por um povo extremamente heterogêneo e Estados Unidos não é Roma.
Essa segunda eleição de Trump é uma outra representação desse imaginário coletivo que vê a mudança e a crise e tem medo, quer retornar ao passado idílico porque é a saída fácil que se apresenta. Mas se nos limitarmos a discutir passado com passadistas, não vamos construir discursivamente melhores futuros. Não aceitar o rebaixamento de horizontes promovido por esse realismo capitalista e ousar discutir outros futuros é a única possível saída desse buraco.
E Megalópolis é um saco.
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